terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

O que fica.


Nos dias anteriores a morte do astrônomo Carl Sagan, sua mulher, a roteirista Ann Druyan, esteve permanentemente ao seu lado, na cama, sussurando ao seu ouvido "tudo muito bem-feito; com o orgulho e a alegria de nosso amor, eu o deixo partir", enquanto esfregava a pele de seu rosto contra a dele. Também lhe dizia: “1º de junho. 1º de junho” - senha de acesso à felicidade do dia em que se declararam um ao outro. Naquele 1º de junho, 20 anos antes, eram colegas de trabalho: faziam pesquisas para o registro fonográfico que viaja hoje pelo espaço a bordo das naves Voyager 1 e 2. Ann se refere a ele como “o dia santo do amor”, o dia da “heureca”. “O momento em que se revela uma grande verdade, que seria confirmada pelas inúmeras linhas independentes de evidências nos vinte anos seguintes. Mas também a admissão de um compromisso ilimitado. Uma vez admitidos neste mundo de maravilhas, como poderíamos ser felizes fora dele?”.

Esse relato está no epílogo que, dilacerada pela dor, em fevereiro de 1977, Ann escreveu para “Bilhões e bilhões”, último livro de Sagan. Foi neste texto em que pensei quando tivemos a notícia, há alguns meses, de que a Voyager 1 se tornara o primeiro artefato a ultrapassar os limites do sistema solar, carregando “suas revelações sobre um pequenino mundo embelezado pela música e pelo amor”. É ele que invoco sempre que penso no luto. Ou, talvez, sempre que penso no amor, e na ideia que tenho dele.

Mais recentemente, em 2012, o autor inglês Julian Barnes escreveu um relato belo e corajoso sobre o intenso luto em que se meteu após a morte de sua mulher, cinco anos antes (“Altos vôos e quedas livres” que saiu no Brasil ano passado, pela Rocco).

Lendo o Julian Barnes e relendo a Ann Druyan, me ressinto por não conseguir me lembrar de nenhum relato tão marcante e recente sobre outra espécie de luto. O luto pela pessoa que se extinguiu não na morte, mas num tipo de “heureca” similar em intensidade e oposta em sentido àquela experimentada por Sagan e Ann em seu 1º de junho. (Ricardo Lísias tentou há pouco tempo atrás, mas sinto que desperdiçou seu inegável talento em páginas de literatura mediana). De repente, a pessoa amada simplesmente não existe mais; mas o amor, sim. E, em paralelo à dor do luto, há a perplexidade e o ressentimento pela descoberta: a pessoa se extinguiu porque nunca existiu; fora, desde sempre, um terrível engano. Me refiro, claro, a algo muito diferente das idiossincrasias e pequenos enganos da vida a dois.

Também penso na pergunta que um amigo fez a mim e a outras pessoas numa sala de aula, há alguns meses: “mas o que te incomoda no mundo, de verdade?”. Não sei se estaria no topo da minha lista, mas uma possível resposta seria: a súbita falha, contemporânea, na veemência do amor. E a palavra que quero usar é exatamente essa: veemência.

A forma como nós, hoje, dificilmente vivemos com visceralidade a experiência amorosa. O amor como enovelamento ao mundo tornando-se impossível – ou raro. Como tornou-se rara a cumplicidade não resignada, mas de fato apaixonada, que faz com que Julian Barnes, cinco anos depois da morte de sua esposa, ainda se dê ao direito de conversar com ela, tal qual um ventríloquo distraído. Talvez me incomode que estejamos todos atados ao exercício compulsivo de exibicionismo, à isca que as redes sociais exibem todos os dias para fisgar a vaidade e o egoísmo, proliferando a mentira e formas muito tacanhas de desejo.

Talvez me incomode que, ao olhar ao redor, eu veja muito pouco ou quase nenhum resquício daquele 1º de junho em que Ann e Sagan disseram “sim” ao telefone, tendo certeza de que, enquanto estivessem vivos, experimentariam um tipo de compromisso que não teria nada a ver com romantismo ou aprisionamento, mas sim com curiosidade e entrega, coragem e respeito ao que é um luxo delicadíssimo no intricado funcionamento do mundo, este do qual tentamos dar notícias por meio de duas naves que, espera-se, vão sobreviver a um futuro inimaginavelmente distante.

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